domingo, 19 de junho de 2016

Boba, Realizada e dos Livros

Ontem fui premiada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), a sessão brasileira do Internacional Board on Books for Young People (IBBY-Unesco), na categoria Relato Real da décima quinta edição do Concurso FNLIJ Leia Comigo!.

O prêmio são livros de literatura infantil e juvenil, além de um papel valioso garantindo que não era sonho. Vou ler os livros e depois pretendo fazer circular por crianças e jovens, não sei ainda quais nem quando nem como.

 Boba, Realizada e dos Livros com meu prêmio 

Para mim o prêmio maior foi ter sido vencedora de um concurso promovido pela FNLIJ. Essa casa de livros para crianças, pioneira em projetos de incentivo à escrita literária e resistente a qualquer tipo de golpe e que sempre respeitei. Há quase 20 anos, a FNLIJ faz um evento, este Salão, dedicado somente aos livros infantis e juvenis. O de 2017 já está marcado. Vai ser entre 31 de maio e 11 de junho.

Eu sempre quis trabalhar na FNLIJ. Era assim uma espécie de quimera de que passaria o dia lendo o que "as pessoas que faziam o que eu queria fazer" escreviam. Quem sabe eu seria como elas. E teria os meus livros Altamente Recomendáveis pela FNLIJ.


Certificado de Vencedora do  Concurso Leia Comigo! 2016

Me lembro que "descobri" a FNLIJ quando escrevi o texto Doroteia cheia de ideia. Era 1998, século passado. Naquele ano, depois de eu ter escrito compulsivamente por quase 20 anos (eu tinha 24 em 98), comecei a pensar que seria escritora, profissionalmente, um dia. Fui à Biblioteca Nacional registrar o meu texto, com medo de que alguém roubasse e publicasse. E a Internet nem era essa coisa toda...

Em seguida, fui ao escritório da Fundação, que também fica no Edifício Capanema, para "me inscrever" como autora. Achei que era assim. Não era. Me explicaram o que a Fundação fazia, me associei e recebi o Notícias da FNLIJ por vários anos. Em 2001, fui lá fazer pesquisa para minha monografia sobre os livros da Clarice para crianças. 

Considero que em 1998 comecei a sonhar com o que se concretizou em 2011. O primeiro livro publicado: E com quantos paus se faz uma canoa? (Il. Carla Pilla, Gryphus).  Estreei com poesia e o primeiro lançamento foi... onde? onde?... Na Biblioteca FNLIJ para crianças, no Salão FNLIJ! 

Convite do Lançamento  do Canoa no Salão FNLIJ, em 2011 

Na época, a Carla Pilla, que é gaúcha, estava morando no Rio e nos encontramos para pensar uma ação que envolvesse o nosso livro para o  lançamento. Fizemos uma coisa única e sensacional naquele dia, remontando o poema do livro junto com as crianças com base nas ilustras da Carla, que misturam colagens de objetos, fotos e grafismo.

Carla Pilla e eu no estande da editora Gryphus
O segundo lançamento deste livro foi na minha livraria preferida no Rio - que me perdoem as outras preferidas, mas a Livraria Argumento do Leblon e eu temos uma longa história de parceria profissional e de amizade. 


Lançamento do Canoa na Livraria Argumento

Voltando uns capítulos da história 

Em 1998, comecei a escrever também um juvenil para falar de uma separação amorosa, exorcizar a mágoa e o trauma de uma traição. Escrevi umas trinta páginas e abandonei sem terminar. 

Dez anos depois, como aluna do ateliê de escrita na casa de Vera Bensalah, durante o processo para escrever um romance, botei na roda Luísa, Marina e Beto, meus personagens do juvenil, e decidi encarar a literatura juvenil. 

Consegui terminar em 2009, com a valiosa ajuda da Verinha e também de Flavia, Liége, Marília, Ana Adélia e Ricardo Sérgio. 

Marília, Ana, Vera, Teresa, Flavia e Liége. Foto: Rico

Este texto tem sabor de suor. Transpiração. O que era um processo de superar uma dor de cotovelo da adolescência passou a ser um processo de descoberta de técnicas de escrita literária, de reescrita, de edição, de desapego e crescimento.

Descobri a escrita consciente, da busca pelo texto enxuto e preciso. Amadureci e aprendi muito com a Verinha Bensalah e este grupo do Ateliê. Obrigada eternamente a vocês e à Claudia Miranda, que me convidou para o Ateliê de sua prima e amiga Vera.

Entreguei o original cheia de confiança para a Luciana Bastos Figueiredo, que em 2009 editava juvenis com sucesso. Ela me chamou para um chope em 2010, quando já tinha saído da Rocco, para me dar um feedback.

Em 2011, Luciana levou o original ainda sem título (a gente chamava de "Luisa") para a Gryphus. Junto, eu tinha enviado um poema simpático chamado Matemática. Achava que podia dar um livro. E deu. Com o título E com quantos paus se faz uma canoa?.

O Canoa teve seu ciclo completo porque foi adotado pelo Colégio MV1, em São Gonçalo. Peguei o coração na mão e fui lá assistir ao trabalho feito pelas crianças do Segundo Ano do Ensino Fundamental. Emoção até os dentes.

Meninas: "Com quantos pliés nasce a bailarina?

Os meninos também pediram uma foto só com eles

O juvenil já tinha esperado 10 anos. Podia esperar mais três. Foi lançado em 2014 com o título Depois a gente vê como fica. Este foi o meu quarto livro publicado em três anos de carreira, se posso considerar que já tinha uma. 

Depois a gente vê como fica, com ilustração em objetos de cerâmica da incrível Gláucia de Barrosteve lançamento noturno na Livraria Blooks do Rio.

Convite para noite de autógrafos do Depois a gente vê como Fica, na Blooks




Beto, Marina e Luísa na cerâmica de Gláucia Barros 


Esse foi também o meu quarto livro editado pela Luciana, que foi quem me apresentou como autora estreante para a Gryphus e também para os editores que lançaram o Depois a gente vê como fica, o Lá no Meu Quintal A Recontadora de HistóriasJá falei da Luciana no post  sobre o processo do Quintal. 

O Quintal foi lançado em dois dos meus quintais favoritos do Rio. O primeiro, no Forte de Copacabana, e o segundo, no Parque das Ruínas, em Santa Teresa.

Convite do segundo lançamento do Quintal

Realidade e Ficção
Desde pequena escrevo memórias e conto a vida nos meus diários. Aos 12 anos, escrevi um romance - Pedacinho de Saudade. Mas depois voltei aos diários e só aos 24 anos comecei a me dedicar à ficção. Acabei estreando com poesia, um gênero literário que demorou, mas me capturou sem que eu percebesse, depois dos 30. Hoje acho que escrevo prosa e poesia com a mesma facilidade, ou dificuldade, e intensidade. 

O processo da Recontadora foi parecido com o do Quintal. Enquanto este foi escrito a partir de uma lembrança do ilustrador Agostinho Ornellas, o Recontadora é baseado nas memórias de uma amiga amapaense, a Lúcia Morais, contadora de histórias e mediadora de leitura incansável. Lúcia e sua avó Ana são minhas personagens reais. 

Esse livro tem um gostinho especial. Com ele, caiu a ficha de que eu sou uma profissional do fazer literário. O Recontadora é um divisor de águas. Depois dele, fui chamada para conversar com leitores em eventos literários e lancei o livro na Biblioteca Municipal de Duque de Caxias. 

Convite do evento de lançamento em Caxias 


A Recontadora de Histórias reafirmou o meu caminho de misturar o relato real e o ficcional, como no Quintal, e que repeti agora, com o  Menino Maluquinho e a menina dos fósforos. 

Com Lúcia Morais, no lançamento em Duque de Caxias 

Fiz também uma tarde no Museu do Índio no Rio, dividindo a mesa com o querido Marcelo Aouilla. Foi a primeira vez que vi mais gente desconhecida na fila de assinaturas, gente que comprou o livro para ler e não por ser o livro da filha ou da amiga. 

Assinando exemplar no Museu do Índio, em Botafogo 


Lançamento regado a contos da Tradição oral indígena 
Um mês depois, outra surpresa: Luciana me avisou que a Livraria Blooks de São Paulo tinha oferecido uma data. 

 E rolou lançamento  na Blooks Livraria de São Paulo 

Luciana, Elisa e eu no clique da Ana Santeiro 

Isso não foi tudo. A atriz e contadora de histórias Benita Prieto fez uma ponte com o Instituto Ekloos e uma parte da renda com a venda dA Recontadora foi revertida para ajudar a montar a nova biblioteca da Comunidade dos Tabajaras, em Copacabana, coordenada pelo Alex Azevedo, o Lequinho, a própria Lúcia Morais e a Trupe PequenAlegria, de mediadores de leitura e contadores de histórias. Isso é uma alegria muito grande porque pra mim os livros têm que chegar a todo mundo, a criança de Botafogo, Santa Teresa e do Leblon e a criança de São Gonçalo, de Caxias e do Tabajaras.  

Recontadora me deu muitas alegrias 
Nesses cinco anos, a minha vida mudou. A minha vida tomou um rumo. Eu sempre soube de onde vinham as histórias, mas agora eu sei um pouco para onde elas estão indo. 

Há de se agradecer a tanta gente que tenho medo desse post virar lista. 
Obrigada, Vera Bensalah, Ninfa Parreiras, Suzana Vargas e aos irmãos do Vaca Amarela e da Família Literária da Estação das Letras. Não posso terminar sem antes dizer que dividi a alegria desse prêmio com duas colegas e irmãs que fazem comigo a oficina de escrita para crianças e jovens da Estação das Letras, com a Ninfa, e que ganharam o Concurso na categoria de Relato Ficcional, as queridas Antonella Catinari e Juliana Borel. Se elas deixarem, vou publicar o texto delas aqui também. 

A Grande Família Literária e Ninfa, ontem no Salão
Um viva a todos os escritores e poetas brasileiros que fazem parte da minha formação como leitora e como escritora. Citarei aqui apenas um: Bernardo de Mendonça, autor de um dos livros que vivo relendo, o Romance da Onça Dragona (Il. Pink Wainer, Graphia Editorial). 

Altamente Recomendável. 




Quando o mar chegar


Lina não conhecia o mar.

Desde pequena, morava no mesmo lugar: na praça, pertinho da escola, da igreja, do correio, do Boteco do Carioca e da banca de revistas.

Na banca Lina descobriu o mar. Correu no Boteco do Carioca e perguntou como era o mar. Ele contou com palavras. Lina achou o mar de Carioca triste.

Carioca disse que o mar estava ali perto, garantiu que atrás da montanha tinha uma estrada que dava no mar.

Lina sonhava com as cores do mar, a música e o perfume do mar.

- Que gosto tem o mar, Carioca?

- Gosto de lágrima, Lina! Que saudade do mar...

- Que saudade de ir conhecer o mar...

Os outros riam.

Um dia, Carioca chamou Lina e disse que um amigo estava chegando do Rio e vinha trazendo o mar.

Lina foi para casa animada e não conseguiu dormir bem. Ansiosa, viu a Noite ir embora, serenamente, pela janela de seu quarto e o Dia chegar trazendo a brisa que desaparecia o orvalho das folhas. 

O riacho que passava atrás da casa de Lina cantarolou uma cantiga de sua infância. Era bonito, mas e a música do mar? Seria igual ou mais bonita do que aquela?

Em uma tarde, quando já não esperava mais, um homem e seu filho chegaram ao Bar do Carioca. O pai, barbado e de chapéu, sentou-se e pediu um copo. O filho, logo que Lina reparou, estava sorrindo. E convidou-a para ouvir histórias.

O pai tirou um vidrinho de dentro da bolsa e disse que era o Mar. Lina olhou de olhos arregalados que, em seguida, murcharam.

- Então o mar é isso?

O menino co(n)chichou perto do ouvido dela.

- Pra ouvir o mar, você tem que fechar os olhos.

Então ela obedeceu e sentiu uma coisa fria encostar em seu ouvido. Aí ouviu: Schhhhh, Shchhhhh...

O pai falou dos peixes, das ondas, da espuma, do horizonte e da areia fina.

O filho falou das ondas também. E de construir castelos e pegar jacaré.

Lina imaginou. Lina sonhou.


Chegou a hora de irem embora. O pai ia levar o mar. E seu novo amigo. Lina pediu para eles voltarem.

-  Quando o mar chegar aqui, a gente vem pra ficar - prometeu o pai.

Mas o filho disse:

- O mar está dentro de você. Guarde-o, um dia eu volto e te levo comigo.

Difícil foi esquecer o mar. O mar que tinha trazido o menino. 

De tanto pensar e falar do mar, começaram a dizer que ela tinha cismado.

- Eu não cismei.

Um dia o mar chegou quando a cidade toda estava dormindo.


De tanta alegria, decidiu viajar para buscar o menino.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Menino Maluquinho encontra a Menina dos Fósforos

Esse relato real foi o texto vencedor do 15º CONCURSO FNLIJ LEIA COMIGO! 2016  Veja aqui.


Vicente tinha cinco e Inácio, três anos completos.

Sobrinhos muito amados. Sempre leio para os dois. Sinto que eles me veem como “a tia que vem aqui ler pra gente”. Sempre pedem, mostram os livros novos, querem que eu releia os preferidos de cada um, disputam para ver quem vai escolher as histórias do dia. O texto flui sem interpretações, e eles gostam assim, se envolvem com a narrativa, entendem os enredos, percebem quando um e outro personagem ou o narrador estão falando. Sem voz esganiçada para mulher, grossa para homem ou tatibitate para criança.  Ah, eles adoram, sim, uma gargalhada de bruxa! Morrem de medo da bruxa, riem da tia.

Para o Vicente, certa vez, li o original do meu segundo livro, o Lá no meu quintal. Sentados no banco detrás do carro, ele, com três anos, atento. Não tinha ilustração nenhuma, só o texto. E, pasme, eu lia o arquivo pelo celular. No final, surpresa! “Tia, por que você fez a tia do menino tão má?”

Meu outro sobrinho, o Inácio, desde que sabe andar e tem força para carregar peso usando suas próprias mãos, vai à estante, escolhe o que quer, chega perto de mim e ordena: “Leia!”. Tem preferência pelos grossos e pesados. Uma vez, me trouxe o Código Civil todo feliz, acho que não tinha feito nem dois anos: “Leia!”. É súplica, ordem, pedido. Olha para mim apertando os olhos, sério, ansioso.

Antes mesmo de sentirem o que é ler, meus sobrinhos são leitores vorazes, interessados, valorizam as palavras. Gostam de ilustrações, mas sempre questionam quando não veem além do que o texto está dizendo. Isso é mágico!

Um dia, em uma noite em que eu lia um livro atrás do outro para eles, enquanto jantavam, Vicente avistou, na prateleira, “O Menino Maluquinho”, do Ziraldo.  Foi à estante da sala, onde os livros dos pais moram junto com os dos filhos, e trouxe o volume encapado, páginas manchadas e amareladas.

– Olha, tia! Sabia que esse livro é velho porque era do meu pai, da Tia Helena e do Tio Antonio? De quando eles eram pequenos! – disse o Vicente – Agora é nosso!

– Eu também tenho o meu guardado! – falei.

Comecei a ler:

– “Era uma vez um menino maluquinho. Tinha o olho maior do que a barriga. Tinha fogo no rabo. Tinha vento nos pés...”

Contei a ele que de tanto ler, sabia algumas partes de cor. O Ziraldo era padrinho do Clube de Leitura da minha escola e, vez em quando, ia lá ler com os alunos, eu inclusive. Disse que virei escritora por causa de gente como Ziraldo.

– Eu também sei uma parte, tia –  Vicente falou –  Já li muitas vezes esse livro! – Me mostrou: “E macaquinhos no sótão...”.

Olhei para a mãe deles e me lembrei de quando eu lia “O Menino Maluquinho” para ela. Eu, com 12 anos, minha irmãzinha com quatro. Agora os meninos dela! O mesmo exemplar do livro que os avós do pai e dos tios leram! Quanta emoção!

De repente, não consigo mais evitar e sou tomada por uma coceira no nariz e um frio na barriga. É uma das melhores sensações que se pode ter, juro.

Os meninos percebem o clima. Minha irmã ameaça rir de mim.

“Por que você está chorando, tia?”

“Ela está emocionada com o livro”, Marina fala, enquanto as minhas lágrimas pulam de galho em galho, olho em nariz, e escorrem para minha boca. Não enxugo. Não nada.

Eles não perguntam mais, investigam, admirados, a mais nova descoberta sobre os livros. Os pequenos olhos riem.  As dúvidas estão vivas, brilhantes, mas eles guardam como tesouros.

Não sei se a voz trêmula da tia os perturba, mas tento não descompassar o ritmo da leitura, consciente de que eles estão sorvendo o mistério.

Olho para eles quando o livro chega ao final, que eles já conhecem.

Repito a palavra. Feliz.

Choro com vontade. Minha irmã liberta a gargalhada. O Inácio olha para a tia. Imita neném chorando.

            Vicente guarda O Menino Maluquinho e já vai trazendo outro, escondendo o jogo, um sorriso sacizeiro que, sinceramente, quero guardar para sempre na memória cada vez que for ler para um maluquinho.

Vicente abre o livro dos contos do Andersen e pergunta:

“Tia, agora você quer ler para mim a da menina vendedora de fósforos?

E lá vai a tia, com os olhos ainda ardidos, ler a história da Menina dos Fósforos, um dos contos mais tristes recolhido e recontado por Andersen, no começo do século XX. Sai o menino feliz e entra em cena uma menina que, na noite de Natal ou de Ano Novo, perambula pelas ruas no inverno europeu, descalça, sem pai nem mãe, sem comida, tentando vender caixinhas de fósforos.

Obviamente que ninguém compra nada e a menina segue, gélida, famélica e sozinha. Depois de sofrer bastante, a menina resolve usar palitinhos de fósforo para se aquecer e, então, eis que ela começa a ver alguma cenas.

Primeiro, ela vê mesmo o interior das casas ricas ao redor, com suas imensas ceias fartas e lareiras acesas. Até que, depois de acender uma caixa inteira de fósforos e, obviamente, não se aquecer, ela tem uma visão da avó, que já morreu obviamente. E o grand finale, pobre tia leitora em prantos, é a Menina dos Fósforos reencontrando sua falecida avó e, enfim, se aquecendo junto às estrelas brilhantes do céu.


Não queria chorar, tia?