Ele entrou na frente. Ia segurando a mão da mais velha, e a mais
nova dependurada no outro braço. Doía, acredito, pela expressão franzida que
sua testa carregava. Logo atrás dos três pirralhos seguia eu. De tênis novo -
novinho -, meu presente do Papai Noel.
Ele
estava cheio de si. Tinha cumprido o que prometera: a casa era nossa.
–
Eu pedi a biblioteca, lembra?, quando você me mostrou a foto – eu disse, com
algum receio que não demonstrei.
Como
eu era o mais velho dos homens e ele me devia alguns favores, não houve o que
objetar. Quando vi o tamanho do brinquedo, perguntei, mais uma vez, se ele
tinha roubado. Mas ele disse que não, que comprou, e mostrou um papel.
–
Quanto você pagou por ela?
–
Trinta bolinhas e duas bonecas.
–
A minha boneca? – perguntou Irene encrespada.
–
Não, aquela boneca sua era feia demais, ninguém ia querer.
–
Então qual? Já sei: a da Filó, a grande, e a que você roubou da Ritinha.
Ele
não disse que sim. Também não negou. Então nós quatro nos olhamos. A Filó olhou
por cima dos óculos desproporcionais que ela usava. Mas a casa era grande mesmo e nós entramos para ver. Eu só queria
ver os livros, não gostava mais de jogar bolinha de gude.
Entramos
tentando fazer o menor ruído possível.
Filó colocou Irene no chão, que quase
chorou, não fosse uma mão abafada a cobrir sua boca. Senti que nossa presença
parou o ar. Assim, as coisas vivas (e estavam mesmo vivas) morreram quando nós
passamos a habitar a casa. Quando chegamos e dominamos a nossa ala.
Tudo
então era nosso, o plano tinha dado certo e, agora, nós quatro éramos uma
família com casa e tudo. Ainda tínhamos que crescer. E aí, ele se casaria com
Irene. Eu me casaria com Filó.
E
já estávamos vivendo ali como se as horas fossem dias passados. Mas o que não
esperávamos era o trabalho que dava viver em uma casa daquelas. A divisão das tarefas no que dizia respeito
à limpeza dos cômodos não tinha sido planejada. E passávamos mais tempo a
discutir quem faria o quê do que desfrutando de nossa propriedade.
Ele,
apesar de esperto , para fazer negócios, era um frangote que não dava conta de
trabalhar pesado. Com o tempo, já discutíamos se ele deveria ter comprado
aquela ala ou a outra que, pelo que eu me lembrava, aparentava ser maior.
Para
tomar a outra parte, era preciso entregar outro saco com 50 bolinhas e, aí sim,
as bonecas da Filó e da Irene.
Aí
não, as mulheres não aceitaram. Peguei Filó e fomos embora. Ele e Irene
ficaram.
(2009)